Em meio à pandemia, a quadrilha de um traficante de drogas está invadindo comunidades, na Zona Norte da cidade, e criando um novo complexo de favelas. Na expansão de seu domínio, o criminoso tenta impor a religião, deixa rastro de pessoas desaparecidas e coloca barricadas à beira da Avenida Brasil, uma das principais vias de acesso à cidade do Rio de Janeiro.
O “Complexo de Israel” é, atualmente, como vem sendo chamado o conjunto de favelas dominadas pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Peixão, de 34 anos. O criminoso tem 35 anotações criminais em sua ficha. Já foi investigado, indiciado, denunciado mas até hoje não foi preso.
Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-pau são as cinco comunidades que compõe o novo complexo. Juntas, no local, moram cerca de 134 mil pessoas.
Os policiais apuram ainda a expansão da quadrilha para duas localidades que nunca foram dominadas por traficantes: a Estrada do Porto Velho e a Rua Lyrio Maurício da Fonseca, na região de Brás de Pina.
As ações do criminoso chamam a atenção dos investigadores por ele, a cada área dominada, exibir símbolos do Estado de Israel como a bandeira do país e até a Estrela de Davi e colocá-los em pontos das comunidades para demarcar o seu domínio.
“O que se tem percebido é que eles estão se aproveitando desse período para ampliar a dominação territorial pra áreas que antes não tinham a presença do tráfico de drogas. Então, ruas que eram comumente acessíveis pela sociedade e pelas forças de segurança”, afirmou o delegado Maurício Mendonça, da 38º DP (Brás de Pina).
Junto a cada barreira instalada pelos bandidos há o símbolo do amor e a palavra paz. Essa é a forma escolhida pela quadrilha para afastar a polícia e delimitar o território.
O Globocop flagrou barreiras na Cidade Alta, conjunto habitacional, na Zona Norte do Rio, com mais de 2 mil apartamentos. Numa rede social, a localidade é descrita como um condomínio fechado.
Segundo a polícia, o autor da mensagem é Giovani Barbosa Coutinho, o Stuart Little, gerente do tráfico de drogas na favela.
Moradores reclamam da ação de criminosos no bairro:
É muito triste. Eu moro aqui já há 45 anos, então é muito triste. A gente sabe que a violência tá em toda parte. Mas agora a gente ficar refém e ter que ficar dentro de casa. E sabendo que aqui, aonde eles ficam, é uma via publica, é via publica.
Outra morador reclama das ações da quadrilha na região:
“Eu levo um choque porque eu não tô acostumada a conviver com pessoas armadas. Eu não to convivendo. Isso é triste você conviver com pessoas armadas numa rua”.
Expansão
A facção de Peixão domina a favela de Parada de Lucas há décadas. Em 2007, invadiu Vigário Geral, comunidade vizinha.
Nove anos depois, em novembro de 2016, o bando cruzou a Avenida Brasil e chegou à Cidade Alta. Os confrontos durante sete meses.
Em maio de 2017, a polícia interveio no confronto e prendeu 45 pessoas e apreendeu 32 fuzis. Na época, a quadrilha de Peixão incendiou nove ônibus e dois caminhões na Avenida Brasil, na Rodovia Washington Luiz e na Linha Vermelha.
Rotina de desaparecimentos
Em 2019, os traficantes começaram outra disputa: dessa vez pelo controle da favela Cinco Bocas, em Brás de Pina.
Bandeira de Israel no alto da comunidade de Cidade Alta, na Zona Norte do Rio — Foto: Reprodução
Oito moradores da comunidade desapareceram. As investigações concluíram que eles foram executados. E os corpos não foram encontrados.
A polícia diz que os desaparecimentos nas regiões dominadas pela facção são subnotificados. No último dia 12, um morador de Olaria, na Zona Norte da cidade, sumiu depois de ir a uma festa.
O corpo de Luciano Castro Bonfim, de 35 anos, foi localizado às margens da Baía de Guanabara. Nos últimos dias, policiais também encontraram restos mortais em tonéis em outros três pontos da baía.
Os moradores contam que mais sete pessoas desapareceram desde o início de julho nas favelas da região. Nenhum dos casos foi registrado na Delegacia de Descoberta de Paradeiros.
Há relatos de desaparecimentos desde 2005.
Na quinta-feira (16), os moradores encontraram um corpo no porta-malas de um carro. Segundo os investigadores, é mais uma vítima dos traficantes.
Peixão e mais 10 indiciados
A Polícia Civil indiciou Peixão e mais dez comparsas por homicídio qualificado e ocultação de cadáver. Quatro bandidos foram presos pela Polícia Militar. Os outros continuam foragidos.
- Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão
- Rodrigo Ribeiro da Silva, o Mia
- Loran de Azevedo Freaza, o Marrom
- Moisés Severino da Silva, o Dino
- Rafael Félix da Silva Valadares, Lulão (preso)
- Erick Silva La Rosa, o Ninho (preso)
- Alan Pereira da Silva, o Gordinho (preso)
- Thiago Ferreira Rangel e Silva, o Índio (preso)
- Edilson de Jesus Júnior, o Pirâmide,
- Thiago Souza de Lima, o Betinho
- Leílton Medeiros da Silva, o Artilheiro
De acordo com a polícia, Leílton, conhecido como Artilheiro é bem atuante nas redes sociais. Na semana passada, ele anunciou a tomada de uma favela pela facção:
“Da estação de Vigário Geral até a estação de Brás de Pina, tudo cercado.”
Em outro perfil, a comemoração:
“Agora já é realidade: mais uma grande conquista. Está formado o Complexo do Israel.”
Ataque a policial do Bope
O grupo também se notabiliza por confronto e ameaças às pessoas. Uma das vítimas dos criminosos que agem na Estrada do Porto Velho foi um policial militar do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Ele passava de carro na noite de 23 de junho quando foi abordado por homens armados.
Para não ser identificado, o policial acelerou e levou vários tiros. O PM se protegeu numa casa e conseguiu escapar. O caso é investigado pela delegacia de Brás de Pina, que apura ainda outra denúncia: a de que os moradores estão sendo revistados ao entrar e sair da rua e nos ônibus. Até os conteúdos dos telefones celulares são examinados pelos traficantes.
Um dia depois do ataque ao PM, a polícia retirou as barricadas da região. Antes, precisou trocar tiros com os criminosos.
Há duas semanas, o batalhão de Olaria voltou ao local para retirar mais barreiras e apreendeu drogas, uma pistola e fogos de artifício. Dois homens foram presos. Na quarta-feira (22), a polícia retirou barricadas em 16 pontos da região.
“Se o gelo não for enxugado, a casa será inundada. Então, é importante sim uma presença da polícia militar em áreas conflagradas. Sempre respeitando a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) mas é importante não só para prender criminosos, retirar armas de circulação e também para evitar esse deslocamento de grupos de criminosos em busca de uma expansão territorial”, explicou o tenente-coronel Mauro Fliess, porta-voz da PM do RJ.
Um morador desabafa sobre a situação:
“O que acontece é que a comunidade tá com medo, tá oprimida porque vem acompanhando o que vem acontecendo há quatro anos na Cidade Alta, entendeu? O tráfico só vem crescendo, a população só vai ficando amedrontada e o pessoal acompanhou tudo. Acompanhou muita coisa. Muita gente sumindo. E os mesmos meliantes que tão sumindo com pessoas, invadindo casas, continuam soltos. e fazendo essa barbaridade”.
Guerra religiosa
Na favela Cinco Bocas, o medo também atinge a fé. Os moradores mais velhos conhecem a região como a Vila Santa Edwiges.
Uma referência à imagem da santa instalada na quadra da comunidade.
Quem vive na favela diz que comparsas de Álvaro Rosa, o Peixão, arrancaram e destruíram a imagem. O local onde a santa ficava está vazio.
Peixão se intitula entre os criminosos como Arão, irmão de Moisés, da Bíblia. Seu braço direito no crime é Jeremias. E chama sua quadrilha de “Tropa do Arão”.
Na internet e nos muros da região são vistos pintados símbolos de peixes junto às bandeiras de Israel.
Em nota, o arcebispo do Rio, Cardeal Dom Orani Tempesta lamentou o ocorrido e afirmou que a paróquia de Santa Edwiges, em Brás de Pina, tem missas regularmente.
Os traficantes se apropriam de imagens e símbolos religiosos espalhando as representações nas redes sociais e em muros das áreas dominadas.
“O que a gente tem conhecimento é que o líder do tráfico de drogas naquela região impõe de maneira muito contundente a religião por ele praticada. Então ele não permite que outras pessoas pratiquem religiões diferentes”, disse o delegado Maurício Mendonça.
Peixão responde na Justiça por um ataque a um terreiro de candomblé, em abril de 2019, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
O templo ficou destruído. O babalorixá e os filhos de santo foram expulsos da casa. No muro, os criminosos deixaram uma mensagem: “Jesus é o dono do lugar”.
“Eles tem uma metodologia de levantar… de por exemplo reprimir a religião das pessoas, né? Eles tem uma metodologia de… por exemplo, sorrir pra você pela frente e por trás eles estão se organizando porque sabem que você falou não. A partir do momento que você fala não pra eles você já é visado”, explicou uma mulher que preferiu não se identificar.
“Eles estão “tentando” em Brás de Pina, expulsando família, expulsando macumbeiro”, disse outro frequentador de centro espírita.
Em nota, o presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, babalaô Ivanir dos Santos pede providências para essa situação.
“A intolerância religiosa provoca danos irreversíveis. É preciso agir com rigor e combater. Não é de hoje que as religiões de matriz africana são vilipendiadas, e mais um desrespeito aconteceu, dessa vez direcionada à fé católica. Minha total solidariedade aos praticantes. Como sacerdote, lamento esse menosprezo ao credo. Que as autoridades tomem providências o quanto antes”.
Uma moradora, que não se identifica, resume a situação da região diante das ações dos traficantes:
“Antigamente eles estavam dentro de Parada de Lucas. Depois chegaram até a Cidade Alta, depois ocuparam Cordovil inteiro e fizeram aliança com outros lados e estão presentes na Guaporé e no Quitungo e agora chegaram até a Cinco Bocas em Bás de Pina. Então, os moradores estão ficando com medo. O estado presente não faz nada. Tem operações da polícia, sim, batalhões especiais como Bope e Choque mas depois têm que sair. E quando sai da comunidade, os mesmos meliantes voltam e fazem barbaridades. Cobrando e expulsando famílias que denunciaram o que eles vem fazendo. Por isso, as pessoas estão com medo de denunciar e prestar depoimento”.