O Carnaval do Rio de Janeiro é muito mais do que uma festa popular: é também o palco de uma antiga e estreita relação com os bicheiros, figuras que há décadas exercem influência nos bastidores das escolas de samba. Desde os anos 1940, quando Natal patrocinou a Portela, a presença de chefes do jogo do bicho na folia se tornou uma tradição consolidada.
Na década de 1960, essa ligação ficou ainda mais evidente com a criação da cúpula do bicho, grupo formado pelos principais contraventores da época, que passaram a atuar diretamente na organização e no financiamento do Carnaval. Um dos nomes centrais dessa história é Castor de Andrade, patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel e fundador da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), que revolucionou o Carnaval carioca.
Passadas tantas décadas, em 2025, restam apenas dois sobreviventes da histórica cúpula do bicho: Aniz Abrahão David, o Anísio, da Beija-Flor, e Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, da Vila Isabel. Ambos foram condenados em 1993, ao lado de outros 12 bicheiros, em um histórico processo movido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Apesar das condenações, seguem como figuras centrais na festa mais famosa do Brasil.
Anísio: o eterno patrono da Beija-Flor
Aos 87 anos, Anísio ainda é uma presença marcante nos desfiles da Beija-Flor, sua escola de coração. É comum vê-lo acompanhando de perto os testes de luz e som, distribuindo camisas da agremiação para os fãs e circulando pela Marquês de Sapucaí como uma verdadeira lenda viva. Em 2007, Anísio foi preso em uma operação contra a máfia dos caça-níqueis, mas sua ligação com a Beija-Flor permaneceu intacta.
Capitão Guimarães: da ditadura ao Carnaval
Com 83 anos, Capitão Guimarães construiu uma trajetória controversa. Ex-militar, ele é apontado como torturador durante a ditadura militar, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. No Carnaval, ficou famoso por sugerir a divisão de territórios entre bicheiros, ao lado de Piruinha. Patrono da Vila Isabel e ex-presidente da Liesa, Guimarães consolidou seu poder na Avenida, mesclando autoridade, estratégia e polêmica.
Luizinho Drumond e a Imperatriz Leopoldinense
Outro nome histórico foi Luiz Pacheco Drumond, o Luizinho, patrono da Imperatriz Leopoldinense, que faleceu em 2020 após sofrer um AVC, aos 80 anos. Luizinho também presidiu a Liesa e, assim como Anísio e Guimarães, foi condenado em 1993. Mesmo após sua morte, a família Drumond continua envolvida com a escola, mantendo viva a ligação da agremiação com o jogo do bicho.
Rogério de Andrade: herança de Castor e sangue nas mãos
Na Mocidade Independente, a herança de Castor de Andrade foi disputada com sangue. Seu sobrinho, Rogério de Andrade, acabou herdando os pontos do jogo do bicho, mas entrou em guerra pelo controle das máquinas caça-níqueis, que ficaram com Paulinho Andrade e Fernando Iggnácio, respectivamente filho e genro de Castor.
Paulinho foi assassinado em 1998 e Iggnácio executado em 2020. Rogério, apontado como mandante da morte de Iggnácio, está preso no Presídio Federal de Campo Grande (MS), em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Em 2010, ele sobreviveu a um atentado quando uma bomba foi colocada em seu carro. O explosivo acabou matando seu filho, que dirigia o veículo.
Adilsinho e o Salgueiro: entre festas e investigações
Mais recentemente, um novo nome ganhou destaque nos bastidores do Carnaval: Adilson Oliveira Coutinho Filho, o Adilsinho, atual patrono do Salgueiro. Em 2021, ele chamou atenção ao promover uma festa luxuosa com tema inspirado no filme “O Poderoso Chefão”. Alvo da Polícia Federal e do Ministério Público, Adilsinho é investigado por liderar uma máfia de cigarros e por envolvimento em, pelo menos, 18 homicídios ligados à disputa pelo controle de pontos de contravenção.
Adilsinho se tornou patrocinador do Salgueiro em 2023, fortalecendo a presença de bicheiros na escola. Seu primo, Helinho, é presidente de honra da Grande Rio, reforçando os laços familiares entre o jogo do bicho e o samba.
Monassa e a Viradouro: uma história que atravessa o tempo
Na Unidos da Viradouro, o nome de José Carlos Monassa ainda é reverenciado. Monassa faleceu em 2005, vítima de uma úlcera estomacal, mas segue sendo lembrado como presidente de honra da escola. Sócio de Capitão Guimarães, Monassa assumiu os pontos de jogo do bicho após as prisões da cúpula em 1993. Sua influência marcou a trajetória da Viradouro, que até hoje carrega essa herança.
Bicheiros e Carnaval: uma relação longe do fim
Mesmo com operações policiais, prisões e mortes, a presença dos bicheiros no Carnaval carioca se mantém firme. Seja nos camarotes luxuosos, nas quadras lotadas ou nas articulações políticas nos bastidores da Liesa, eles continuam como peças-chave da maior festa do Brasil.
Entre tradição, crime e devoção ao samba, a história dos bicheiros no Carnaval do Rio mostra que, para eles, a avenida não é apenas um palco de desfile — é território de poder, disputa e legado