194º Aniversario de Maria Firmina dos Reis
Maria Firmina dos Reis nasceu na Ilha de São Luís, no Maranhão, em 11 de outubro de 1825[4], mas foi registrada somente em 21 de dezembro de 1825, como filha de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Era prima do escritor maranhense Francisco Sotero dos Reis por parte da mãe, morreu em 1917 — e renasceu 100 anos depois. Desde 2017, seu clássico “Úrsula” (1859), ganhou 13 novas edições, assegurando a reputação da maranhense como primeira romancista do Brasil e, provavelmente, primeira mulher negra a publicar um romance na América Latina.
“Úrsula” é reconhecida como uma das primeiras narrativas de temática feminista e antiescravista da literatura brasileira, escrita por uma mulher negra em pleno período da escravidão. Para se ter uma ideia, até o conservador Monteiro Lobato (1882-1948), ao ler o livro, escreveu que Firmina lhe despertou “as horas de mais intenso gozo espiritual”.
Mas sua obra não se resume a este clássico. Agora, dois novos lançamentos jogam mais luz sobre a autora. “Memorial de Maria Firmina dos Reis” (Uirapuru), segundo volume de suas obras completas, nos revela uma poeta e cronista incomum, capaz de transitar entre diversos gêneros. Já “Maria Firmina dos Reis — faces de uma precursora” (Malê) recupera uma mulher à frente do seu tempo, tanto no enfrentamento do patriarcado quanto na militância e negritude de sua literatura.
Confusões biográficas
Mas ainda há muitas lacunas a serem preenchidas na vida da escritora. Não há, por exemplo, um único retrato de Firmina, embora ela tenha vivido quase 100 anos, todos eles no lugarejo maranhense de Vila de Guimarães, onde morreu cega e pobre. Por isso a importância do livro da Malê, que traz uma série de estudos reunidos pelas professoras Constância Lima Duarte, Luana Tolentino, Maria Lúcia Barbosa e Maria do Socorro Vieira Coelho.
A escassez de fontes torna difícil a reconstrução da trajetória da escritora, afirma a pesquisadora Dilercy Aragão Adler em “Maria Firmina dos Reis — faces de uma precursora”. Responsável por descobrir a data exata do nascimento de Firmina, Adler esclarece algumas confusões biográficas que costumam acompanhá-la. A mais gritante talvez diga respeito à sua imagem: até hoje, há trabalhos que veiculam o retrato da escritora gaúcha Maria Benedita Câmara Bormann como sendo o de Firmina.
Outra pesquisadora da coletânea, Fernanda Rodrigues de Miranda observa que, embora tenha dialogado de forma consciente e ativa com o seu próprio presente, a escritora maranhense está profundamente conectada com a atualidade. Firmina, segundo a pesquisadora, trouxe uma nova perspectiva: “o negro enquanto sujeito de uma experiência histórica anterior à escravização, com vínculos afetivos, pertencimentos territoriais e ética de existência coletiva”, escreve Fernada. Com isso, abriu caminho para escritoras como Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves.
Firmina, que chegou a lecionar para meninas e meninos na mesma sala de aula, uma inovação no século XIX, dizia que a mente não podia ser escravizada. Não se casou nem teve filhos naturais — somente adotivos. Bastarda, escreveu sobre as mazelas do mundo — a mendicância, a dor, a proscrição, o patriarcado, sobre cismas e queixas. Apesar das limitações, experimentou diversas formas de expressão, da poesia à música popular. Compôs letra e música à tradição do bumba-meu-boi e um hino à liberdade dos escravos, para comemorar o Maio de 1888.
Um olhar arrojado
Essa Firmina múltipla está visível em “Memorial Maria Firmina dos Reis”, saído em dois volumes (2017 e 2019) pela editora Uirapuru. Se a primeira parte trazia dois textos desconhecidos (o romance “Gupeva” e o conto “Elvira”), o recém-lançado segundo volume divulga as crônicas, charadas, composições musicais, um “álbum íntimo” e o volume desconhecido de poesias “Cantos à beira-mar”, publicado originalmente em 1871.
Nos textos em prosa, no entanto, a grande revelação está na Firmina cronista. O giro pelo ambiente em que vivia, o olhar pela sociedade, as suas meditações do cotidiano. Pensar nisso em pleno século XIX, através de uma mulher negra, era algo de muito arrojo. O que torna Firmina única, na categoria das primeiras — desbravadora de um campo que seria dominado única e exclusivamente por homens.
A crônica “Meditações” é um desses exemplos em que a autora fala de um certo bucolismo: “O presente pesa-me como um fardo enorme — o futuro envolve-se-me em denso véu de escuridão; por que desdenharei do meu passado? Há nele uma recordação; uma só. Mas ele é a minha vida”, escreveu ela em 1861.
Em “Página íntima”, é a saudade que lhe traz “acentos de dulcíssimas harmonias”. Já os textos do seu “Álbum íntimo” trazem preciosidades sobre o dia a dia, como as anotações resignadas sobre a perda de pessoas próximas em “Uma lágrima sobre um túmulo”.
Seus poemas reunidos dão uma amostra do lirismo daquela que é, salvo engano, também a primeira poeta negra brasileira. De tom bucólico, seus versos trazem a voga do romantismo, de culto à beleza e de exaltação à natureza, aos costumes e às coisas da terra.
Sem dúvida, Maria Firmina é um fenômeno raro, que, ao ser descoberto pelo mundo da indústria do livro e por inúmeros novos leitores, tem muito a nos dizer em termos de prática e processo de escrita, sobretudo com o sotaque feminino, com o tom forte da fala da mulher preta.