Para ele, foi apenas um treino. Para ela, é a principal chance de conseguir a tăo sonhada vaga em Medicina. Em 20 anos, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) passou de uma avaliaçăo de desempenho ao fim da educaçăo básica para se tornar o maior vestibular do país – e o segundo do mundo. Depois de muitas mudanças e 100 milhőes de inscritos, a prova que ocorre nos próximos dois domingos está em amadurecimento, com nova matriz curricular e alteraçőes na aplicaçăo sendo estudadas.
O médico Daniel Doca, de 37 anos, foi um dos 157 mil jovens que se inscreveram para a primeira ediçăo, em 1998, criada para servir como um referencial dos conhecimentos adquiridos no ensino médio. Ele lembra que foi incentivado pelo pai, professor do cursinho Objetivo, a fazer o exame como um treino para os vestibulares. “Estava muito tranquilo porque para mim era um simulado, uma oportunidade de saber como estava em relaçăo aos outros estudantes. Năo tinha pressăo.”
O Enem começou a caminhar para a atual amplitude já no ano seguinte de sua criaçăo, quando importantes instituiçőes do País, como a Universidade de Săo Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), passaram a usar a nota do exame como um dos critérios para seleçăo de ingressantes. E foi, a partir de 2009, que firmou sua importância, com a criaçăo do Sistema de Seleçăo Unificada (Sisu), substituindo os vestibulares das instituiçőes federais para selecionar alunos.
Atualmente, é o exame que seleciona os estudantes para 240 mil vagas em 130 instituiçőes públicas brasileiras, além de particulares e de outros países, como Portugal. A adesăo das universidades ao Enem foi proporcional ao aumento da pressăo que passou a exercer em jovens, como Giovanna Castanheira, de 20 anos. Aluna de escola pública, ela enxerga a prova como a principal porta de entrada para o ensino superior.
“(O Enem) me dá um leque imenso de oportunidades. Se for bem, posso entrar em universidades do País todo”, diz a aluna, que estuda e trabalha para ter bolsa no cursinho Poliedro. No ano passado, ela chegou a ficar na lista de espera para uma vaga em Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Sua preferência é pela USP, que passou a usar o Enem também para selecionar alunos, além do vestibular próprio, a Fuvest. “Acredito que pelo Enem seja mais fácil, porque é uma prova mais ampla. Está bastante conteudista, mas ainda avalia outras habilidades do aluno, o que eu acho mais justo”, diz a jovem, que é filha de uma dona de casa e um motorista de ônibus e busca ser a primeira da família a fazer uma faculdade.
Aperfeiçoamento
Presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) na época da criaçăo do Enem, Maria Helena Guimarăes de Castro diz que o exame se firmou como uma das principais políticas educacionais do País e năo corre riscos, mas ainda precisa de melhorias. Para ela, a nova matriz curricular (que estabelece os conteúdos cobrados na prova) que está sendo desenhada é fundamental para o aperfeiçoamento.
“Até 2009 era mais uma prova de conhecimentos gerais, mas, quando se transformou em vestibular, ficou mais conteudista por uma demanda dos reitores. O problema é que, a cada pedido das faculdades, a matriz do Enem foi virando uma colcha de retalhos”, avalia.
Idealizadora do Enem e atual presidente do Inep, Maria Inês Fini diz que a nova matriz vai seguir as orientaçőes da Reforma do Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular – ainda em discussăo – que só devem ser implementadas em 2021. “Vamos fazer os ajustes de acordo com o que a base nos indicar, que é uma visăo mais abrangente de aprendizado. Năo podemos só pensar nos conteúdos tradicionais e como avaliá-los, mas também associá-los a outras habilidades e competências adquiridas pelos alunos.”
Para Maria Inês, a discussăo atual sobre a matriz curricular marca o início da “terceira onda” do Enem. “Temos uma avaliaçăo forte e importante, reconhecida internacionalmente. Agora, ela vai ser aprimorada.”
Com 5,5 milhőes de inscritos para a ediçăo deste ano, o Enem é a segunda maior prova de acesso ao ensino superior do mundo, atrás apenas do Gaokao, o vestibular chinês, que tem anualmente cerca de 9 milhőes de inscriçőes.
Logística
Para as duas educadoras, uma mudança importante para os próximos anos é a forma de aplicaçăo do exame – e elas defendem que seja feito online. Maria Inês explica que, mesmo com o investimento em tecnologia, a aplicaçăo seria mais barata e segura. Em 2017, a prova custou R$ 505,5 milhőes – apenas 25% dos gastos săo cobertos pelo valor da taxa de inscriçăo, de R$ 82 – e envolveu mais de 600 mil pessoas na elaboraçăo, distribuiçăo, aplicaçăo e correçăo do exame.
“É muito espetaculoso e hoje já temos tecnologia que poderia tornar o processo mais simples e seguir o exemplo de grandes vestibulares do mundo, como o SAT nos Estados Unidos”, diz Maria Helena. Para ela, essa alteraçăo deveria ser uma das prioridades do próximo ministro da Educaçăo, já que a transiçăo para uma prova totalmente online pode demorar alguns anos. A digitalizaçăo também possibilitaria realizar o Enem mais de uma vez ao ano.
O candidato Fernando Haddad (PT) afirma que pretende aprimorar a produçăo da prova, ampliando os bancos de questőes para fazer várias ediçőes do exame ao longo do ano em versăo digital. Também afirmou que quer retomar o “caráter reflexivo” da prova para testar a capacidade de raciocínio e năo a de memorizaçăo. A campanha de Jair Bolsonaro (PSL) foi procurada, mas năo respondeu se tem alguma proposta para o Enem.
“Sempre podemos aperfeiçoar a prova, mas ela nunca vai deixar de existir. O Enem năo é do MEC, năo vai ser de Bolsonaro nem de Haddad. Ele é do Brasil, uma conquista do estudante”, diz Maria Inês.