Toda história precisa de grandes e medíocres personagens. O desastre da barragem do Fundăo, em Mariana (MG), está repleto deles. De todos os tipos, dos mais corajosos — que arriscaram a vida em nome de outras pessoas — aos mais covardes, aqueles que tiveram alguma responsabilidade, inclusive cientes de riscos, ou se omitiram na tragédia ambiental, ocorrida há três anos. A jornalista Cristina Serra conseguiu identificar cada um desses perfis e contou, a partir de um quebra-cabeças medonho, uma das mais tristes, e ao mesmo tempo, heroica, histórias do país.
No próximo dia 22, às 19h, na livraria Leitura do Píer 21, Cristina lança o livro Tragédia em Mariana: a história do maior desastre ambiental do Brasil (Editora Record). A obra é uma grande reportagem, com toda sensibilidade envolvida. O cuidado da repórter com as vítimas é absoluto, a partir de uma relaçăo poucas vezes vista entre autor e personagens. O jornalismo pode ser produzido entre o rigor da informaçăo e a emoçăo dos relatos — neste caso, distante de pieguismos ou construçőes baratas. O ponto mais importante de Cristina, entretanto, foi năo cair nas armadilhas armadas para repórteres incautos, que tentam se transformar em protagonistas e se esquecem as liçőes de John Hersey, o autor de Hiroshima: năo existe nada mais estúpido do que autorreferências.
Um dos mais importantes exemplos de jornalismo literário, o livro de Hersey conta como a bomba atômica trucidou a cidade japonesa de Hiroshima, em 1945, a partir dos olhos e ouvidos de seis personagens. O texto mistura as histórias dos sobreviventes de uma maneira inovadora, muitas vezes tentadas e poucas vezes conseguida por outros autores. Cristina năo tem tal pretensăo, ao contrário, o que só reforça a força da escrita. Mas, de alguma forma, a cidade japonesa está presente.
“A gente viu um cogumelo de fumaça, parecia fumaça, mas era poeira subindo, uma poeira marrom, alaranjada… Sabe Hiroshima e Nagasaki? Parecia que uma bomba tinha explodido ali”, relatou o major da Polícia Militar Alex Chinelato, comandante do primeiro helicóptero de salvamento que chegou a Mariana, às 17h40 do dia da tragédia, em 5 de novembro de 2015. A aeronave pousou em Paracatu de Baixo. Em pouco tempo, apenas 10 minutos, a lama que havia devorado Bento Rodrigues atingiria o outro distrito. O trabalho, entăo, era avisar os moradores para que abandonassem as casas.
Mensageiros
“Eles (os moradores) nem imaginavam que nós éramos mensageiros de uma desgraça”, contou Chinelato. O lugar mais alto era o cemitério. “O que vimos foi desespero e incredulidade. Um senhor disse: ‘Essa lama só vai chegar aqui amanhă’. Peguei ele pelos ombros e gritei: ‘Vai embora, sobe, vai para o cemitério, senăo você vai morrer.’ Foi o conselho mais contraditório que eu dei na vida, mandar uma pessoa para o cemitério para que ela năo morresse”, lembrou Chinelato, em entrevista a Cristina. De imediato, a lama deixou 19 mortos e destruiu os subdistritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana. Os efeitos, entretanto, se perpetuam.
O grande caldo venenoso que desceu do reservatório da Samarco viajou pelos ribeirőes e rios Gualaxo, Carmo, Piranga e Doce por 660km até o mar do Espírito Santo, levando destruiçăo por onde passou até as cidades de Risoleta Neves, Baguari, Mascarenhas e Aimorés. “Por onde passava, a enxurrada deixava uma camada de rejeitos depositados nas margens dos rios que, com o tempo, ficaria endurecida como se o solo tivesse sido cimentado. Era um cenário de hecatombe”, descreve Cristina, que avança até os dias atuais, onde uma segunda tragédia se abate para o povo da regiăo: o desemprego que chegou com as dificuldades da Samarco. A repórter também volta a dois personagens emblemáticos: Romeu Arlindo dos Anjos e Paula Geralda Alves. Enquanto um conseguiu sobreviver ao sair do mar revolto de lama, a outra salvou parte da populaçăo de Bento Rodrigues ao percorrer as ruas da cidade numa moto. Avisava sobre a morte que descia o rio.
Trecho do livro
“De dentro do carro, ele observou a pasta de resíduos, que vinha da usina. Ouviu um estrondo, como se fosse um rugido das profundezas da terra. Olhou para o reservatório e viu a massa de rejeitos mover-se como uma gelatina. Em poucos minutos, a barragem estourou por completo e a lama armazenada começou a pôr-se em movimento. Romeu travou por 10 segundos, com as măos no volante. Achou que estava passando mal. Era como se o mundo se desintegrasse. O solo se desfazia em pedaços. Ele tirou o cinto, abriu a porta, desceu correndo. Viu a caminhonete tombando”